Insuficiência do testemunho indireto e ausência de testemunhas por medo no Tribunal do Júri
A quebra da soberania dos veredictos é apenas admitida em hipóteses excepcionais, em que a decisão do Júri for manifestamente dissociada do contexto probatório, hipótese em que o Tribunal de Justiça está autorizado a determinar novo julgamento. E, manifestamente contrária à prova dos autos é a decisão que não encontra amparo nas provas produzidas, destoando, desse modo, inquestionavelmente, de todo o acervo probatório. Segundo entendimento do STJ, o testemunho de "ouvir dizer" ou hearsay testimony não é suficiente para fundamentar a condenação. É que "o testemunho indireto (também conhecido como testemunho de "ouvir dizer" ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu. Sua utilidade deve se restringir a apenas indicar ao juízo testemunhas referidas para posterior ouvida na instrução processual, na forma do art. 209, § 1º, do CPP." (AREsp 1.940.381/AL, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 16/12/2021). Contudo, no caso, apesar de nenhuma testemunha ocular ter sido ouvida perante o juízo, verifica-se que todas as pessoas da comunidade tinham medo dos envolvidos. A testemunha velada, em sessão plenária, registrou ter recebido ameaças pela sua condição; o genitor da vítima informou que uma senhora lhe relatou que seu filho viu o momento da execução, mas que não o permitiu testemunhar, acrescentando que várias pessoas no local foram agredidas para não prestarem testemunho; a genitora do ofendido esclareceu que várias pessoas presenciaram o delito, tendo sido algumas ameaçadas no bairro a não prestar depoimento, e outras agredidas. Note-se que a autoria do crime foi indicada por diversos populares, que não prestaram depoimento devido ao medo de represálias. Essas informações foram comunicadas ao primeiro policial que chegou à cena do crime e aos pais da vítima. Como é de conhecimento geral, em crimes envolvendo conflitos com o tráfico de drogas, o receio de represálias dificulta a obtenção de informações de possíveis testemunhas oculares, algo confirmado pelos depoimentos das testemunhas veladas e pelas contundentes declarações dos pais da vítima. Portanto, embora a jurisprudência do STJ considere insuficiente o testemunho indireto para fundamentar a condenação pelo Tribunal do Júri, excepcionalmente, a especificidade do caso, em que a comunidade teme os acusados, envolvidos com o tráfico de drogas, com atuação habitual na região, razão pela qual as pessoas que presenciaram o crime não se dispuseram a testemunhar perante as autoridades policiais e judiciais, merece um distinguishing.
Dever do provedor de conexão de guardar e fornecer IP e porta lógica
Cinge-se a controvérsia em decidir se o provedor de conexão deve individualizar o usuário diante de identificação do IP, sem a informação de porta lógica. Em resumido histórico, já explorado em detalhes pela Terceira Turma do STJ quando do julgamento do REsp 1.777.769 (DJe 8/11/2019), os números IPs da versão 4 (IPv4) são finitos, necessitando de adaptações e novas versões que permitam sua expansão. Atentos ao esgotamento dos números de IP, especialistas propuseram uma nova versão para o protocolo, que é o chamado Protocolo de Internet Versão 6 (IPv6), que permite uma quantidade virtualmente inesgotável de endereços. Enquanto não for finalizada a transição para o IPv6, a univocidade do número IP depende da associação de número adicional, a chamada porta de origem (ou porta lógica). Na hipótese, uma empresa ajuizou ação cominatória em face de provedor de conexão, buscando individualizar o usuário que enviou e-mail difamatório para seus clientes e colaboradores. O provedor de conexão em sua defesa argumentou que não seria possível individualizar o remetente, porque a ausência de informação quanto à porta lógica, somada ao intervalo de conexão impreciso (10 minutos), indicam mais de quinhentos usuários do mesmo IP. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que tanto provedores de aplicação quanto provedores de conexão têm a obrigação de guardar e fornecer as informações relacionadas à porta lógica de origem. Dessa forma, não há necessidade de prévia informação por parte do provedor de aplicação sobre a porta lógica para que o provedor de conexão disponibilize os demais dados de identificação do usuário, pois também esse segundo agente está obrigado a armazenar e fornecer o IP (e, portanto, a porta lógica). Na requisição judicial de disponibilização de registros (art. 10, §1º, Marco Civil da Internet), para identificação de usuário, não há necessidade de especificação do minuto exato de ocorrência do ilícito.
Impossibilidade de rediscussão de cláusulas de acordo de não persecução penal homologado por boa-fé objetiva
A questão em discussão consiste em saber se é possível rediscutir as cláusulas de acordo de não persecução penal já celebrado e homologado, sob alegação de onerosidade excessiva, sem violar o princípio da boa-fé objetiva e a vedação ao comportamento contraditório. O ANPP, previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n. 13.964/2019, constitui negócio jurídico de natureza pré-processual celebrado entre o Ministério Público e o investigado, que visa obstar o oferecimento da denúncia mediante o cumprimento de determinadas condições. Trata-se de instituto que expressa o modelo consensual de justiça criminal, no qual se privilegia a autonomia da vontade do investigado que, assistido por defesa técnica, aceita cumprir determinadas condições em troca do não oferecimento da denúncia, para não se submeter ao processo penal tradicional, com todos os seus ônus e possíveis consequências mais gravosas. A jurisprudência desta Corte tem sido firme no sentido de que, uma vez celebrado e homologado o ANPP, não é possível a rediscussão de suas cláusulas, sob pena de violação do princípio da boa-fé objetiva e da vedação ao comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium). Com efeito, consoante já decidido pela Quinta Turma do STJ, "comportamentos contraditórios como o da defesa, além de violar o princípio da boa-fé objetiva (art. 5º do CPC), aplicável a todos os sujeitos processuais e ao processo penal, vai de encontro ao objetivo da justiça penal negocial, gerando processos e gastos que deveriam ser evitados com o ANPP, além de enfraquecer o instituto, que acaba sendo utilizado como subterfúgio para postergar o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público." (AgRg no RHC 196.094/SP, Ministro Reynaldo Soreas da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 18/9/2024). No caso, a defesa sustenta que as cláusulas do ANPP são mais onerosas do que uma eventual pena condenatória, especialmente no que concerne ao perdimento da motocicleta em favor da União e à prestação de serviços à comunidade, notadamente considerando a ausência de antecedentes criminais do paciente. Contudo, observa-se que o paciente foi assistido por defensor público por ocasião da celebração do acordo, e ainda assim optou por aceitá-lo nos termos propostos pelo Ministério Público. A alegação posterior de que as cláusulas seriam excessivamente onerosas caracteriza inequívoco comportamento contraditório, incompatível com o princípio da boa-fé objetiva, que deve permear todas as relações processuais. Nesse sentido, o art. 565 do Código de Processo Penal estabelece que nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, reforçando a vedação ao comportamento contraditório no âmbito processual penal. Ora, a reanálise da proporcionalidade das condições pactuadas, após a homologação judicial do acordo, além de violar o princípio da boa-fé objetiva, comprometeria a própria segurança jurídica e a credibilidade do instituto, desestimulando o Ministério Público a oferecer novos acordos e prejudicando futuros investigados que poderiam se beneficiar dessa alternativa à persecução penal tradicional. Por fim, cabe destacar que o habeas corpus, por seu rito célere e natureza urgente, não constitui via adequada para a rediscussão das cláusulas de um acordo validamente celebrado e homologado, sobretudo quando não há demonstração de flagrante ilegalidade que justifique a intervenção excepcional desta Corte.
Multa do art. 249 do ECA por recusa parental de vacinação infantil contra COVID-19
Cinge-se a controvérsia em decidir se é obrigatória a vacinação de criança e adolescente contra a COVID-19 no território nacional. A autoridade parental teve sua significação modificada a partir da Constituição Federal de 1988: o que antes se entendia como um poder de chefia do marido para com seus filhos, a partir da Constituição passou-se a entender como um poder-dever dos pais e das mães de cuidarem e protegerem seus filhos. Encontra suas balizas no princípio da paternidade responsável e na doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, posto que, consoante determina o art. 5º do ECA, nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência aos seus direitos fundamentais. O exercício da parentalidade enfrenta diversas complexidades, uma vez que a intervenção parental é essencial, especialmente em tenra idade, pois a vulnerabilidade das crianças impede que compreendam o que é melhor para seu saudável desenvolvimento. Essa autonomia, no entanto, não é absoluta: quando a Constituição confia aos pais a tarefa primordial de cuidar dos filhos, não lhes credita permissão para abusos. O direito à saúde da criança e do adolescente é albergado pelo ECA, em seu art. 14, §1º, o qual determina a obrigatoriedade da vacinação de crianças quando recomendado por autoridades sanitárias. Salvo eventual risco concreto à integridade psicofísica da criança ou adolescente, não lhe sendo recomendável o uso de determinada vacina, a escusa dos pais será considerada negligência parental, passível de sanção estatal, ante a preponderância do melhor interesse sobre sua autonomia. O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do ARE n. 1267879/SP, fixou o Tema n. 1103, estabelecendo como requisitos para a obrigatoriedade de vacinação: a) inclusão no Programa Nacional de Imunizações; ou b) determinação da obrigatoriedade prevista em lei; ou c) determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, fundada em consenso médico-científico. A vacinação infantil não significa, apenas, a proteção individual de crianças e adolescentes, mas representa um pacto coletivo pela saúde de todos, a fim de erradicar doenças ou minimizar suas sequelas, garantindo-se uma infância saudável e protegida. Portanto, a vacinação de crianças e adolescentes é obrigatória, pois assim prevê o art. 14, §4º do ECA. A recusa em vacinar criança ou adolescente contra a COVID-19, mesmo advertidos dos riscos de sua conduta pelo Conselho Tutelar Municipal e pelo Ministério Público Estadual, caracteriza o descumprimento dos deveres inerentes à autoridade familiar, autorizando a aplicação da sanção pecuniária prevista no art. 249 do ECA.
Aplicação intertemporal da Lei 6.880/1980 ao ex-militar temporário desligado antes de 2019
Trata-se de controvérsia a envolver matéria de Direito Intertemporal. Com efeito, o caso em análise volta-se a situação envolvendo militar temporário licenciado quando da vigência da Lei n. 13.954/2019. Como é cediço, a relação jurídica existente entre os militares em atividade das Forças Armadas e a Administração Pública é de trato sucessivo e, portanto, sujeita-se à cláusula rebus sic stantibus, no que concerne aos efeitos dessa relação jurídica que se protrai no tempo. Essa compreensão se ampara na premissa de que os militares não possuem direito adquirido a regime jurídico, tal como decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema n. 24/STF (RE n. 563.708); sendo assim, inexistindo ressalva em sentido contrário, as modificações introduzidas pela Lei n. 13.954, de 16/12/2019, às Leis n. 6.880/1980 (Estatuto dos Militares) e 4.375/1965 (Lei do Serviço Militar) são plenamente aplicáveis aos militares que, à época, já se encontravam no serviço ativo das Forças Armadas, temporários ou de carreira. Contudo, ao contrário da hipótese mencionada acima, é a do o ex-militar temporário que, ao tempo do início da vigência da Lei n. 13.954/2019 já se encontrava licenciado das Forças Armadas, não possuía vínculo jurídico com a União. Em tal situação, uma vez que não é possível falar em uma relação jurídica de trato sucessivo, o eventual direito à reintegração e à reforma do ex-militar temporário deve ser examinado segundo o princípio tempus regit actum, levando-se em consideração a legislação vigente ao tempo do licenciamento tido por ilegal. Portanto, ao ex-militar temporário licenciado do serviço ativo das Forças Armadas antes da vigência da Lei n. 13.954/2019, deve-se aplicar legislação vigente ao tempo do licenciamento, motivo pelo qual seu eventual direito à reintegração e à reforma militar deve ser apreciado à luz das disposições contidas na Lei n. 6.880/1980 (anteriores à Lei n. 13.954/2019).