Validade do empréstimo consignado a analfabeto condicionada à assinatura a rogo, vedada impressão digital
Cinge-se a controvérsia a definir, a par da adequação da tutela jurisdicional entregue, a validade do contrato de empréstimo consignado por consumidor analfabeto mediante a mera aposição da digital ao instrumento contratual. A liberdade de contratar é assegurada ao analfabeto, bem como àquele que se encontre impossibilitado de ler e escrever. Em regra, a forma de contratação, no direito brasileiro, é livre, não se exigindo a forma escrita para contratos de alienação de bens móveis, salvo quando expressamente exigido por lei. O contrato de mútuo, do qual o contrato de empréstimo consignado é espécie, se perfaz mediante a efetiva transmissão da propriedade da coisa emprestada. Essa observação, ainda que pareça singela, é essencial para a identificação dos requisitos de validade do contrato, em especial, no que se refere à sua formalização, isso porque o fundamento central do acórdão recorrido foi a aplicação, ao caso dos autos, do art. 595 do Código Civil de 2002, cujo texto normativo excepcionaria a necessidade de procuração pública para assinatura de contrato de prestação de serviço. Ainda que se configure, em regra, contrato de fornecimento de produto, a instrumentação do empréstimo consignado na forma escrita faz prova das condições e obrigações impostas ao consumidor para o adimplemento contratual, em especial porque, nessa modalidade de crédito, a restituição da coisa emprestada se faz mediante o débito de parcelas diretamente do salário ou benefício previdenciário devido ao consumidor contratante pela entidade pagadora, a qual é responsável pelo repasse à instituição credora (art. 3o, III, da Lei n. 10.820/2003). A adoção da forma escrita, com redação clara, objetiva e adequada, é fundamental para demonstração da efetiva observância, pela instituição financeira, do dever de informação, imprescindíveis à livre escolha e tomada de decisões por parte dos clientes e usuários (art. 1o da Resolução CMN n. 3.694/2009). Nas hipóteses em que o consumidor está impossibilitado de ler ou escrever, acentua-se a hipossuficiência natural do mercado de consumo, inviabilizando o efetivo acesso e conhecimento às cláusulas e obrigações pactuadas por escrito, de modo que a atuação de terceiro (a rogo ou por procuração pública) passa a ser fundamental para manifestação inequívoca do consentimento. A incidência do art. 595 do CC/2002, na medida em que materializa o acesso à informação imprescindível ao exercício da liberdade de contratar por aqueles impossibilitados de ler e escrever, deve ter aplicação estendida a todos os contratos em que se adote a forma escrita, ainda que esta não seja exigida por lei. A aposição de digital não se confunde, tampouco substitui a assinatura a rogo, de modo que sua inclusão em contrato escrito somente faz prova da identidade do contratante e da sua reconhecida impossibilidade de assinar.
Termo inicial da impugnação no cumprimento de sentença: 15 dias da intimação para pagar
Na vigência do CPC/1973, prevaleceu na Segunda Seção que, havendo depósito judicial do valor da execução, a constituição da penhora é automática, independente da lavratura do respectivo termo, motivo pelo qual o prazo para oferecer embargos do devedor deveria ser a data da efetivação do depósito judicial da quantia objeto da ação de execução. Referida orientação tinha em vista a previsão do art. 738, I e II, do CPC/1973, em sua redação originária, anterior à reforma da Lei n. 11.232/2005, que estabelecia a garantia do juízo como pressuposto dos embargos do devedor e que previa que o prazo para a sua apresentação de embargos tinha início com a intimação da penhora ou do termo de depósito judicial. No CPC/2015, com a redação do art. 525, § 6º, a garantia do juízo deixa expressamente de ser requisito para a apresentação do cumprimento de sentença, passando a se tornar apenas mais uma condição para a suspensão dos atos executivos. De fato, nos termos do § 3º do art. 523 do CPC/2015, somente após não ter sido efetuado o pagamento no prazo de 15 dias da intimação do executado será expedido, desde logo, o mandado de penhora e avaliação, o que se justifica pelo fato de que, conforme a doutrina, "antes de decorrido o prazo para pagamento voluntário não se justifica a prática de atos executivos". Não por outra razão, o art. 525, caput , dispõe que o prazo de 15 (quinze) dias para a apresentação da impugnação se inicia após o prazo do pagamento voluntário, independentemente de nova intimação. Logicamente, portanto, se o mandado de penhora só pode ser expedido após o prazo de 15 (quinze) dias do pagamento espontâneo, não há razão para se considerar que a garantia do juízo é pré-requisito da apresentação da impugnação ao cumprimento de sentença. Da mesma forma, se, nos termos do CPC/1973, segundo a redação do § 1º do art. 475-J, tão logo o juízo estivesse assegurado pela constrição de bens - requisito de admissibilidade da reação do devedor -, deveria ser realizada a intimação da penhora, quando, então, querendo, poderia o devedor apresentar impugnação no prazo de quinze dias; na atual redação do CPC/2015, a garantia do juízo é completamente dispensável para viabilizar a impugnação, sendo, assim, igualmente, dispensada a intimação, na hipótese de penhora, ou o reconhecimento da ocorrência de comparecimento espontâneo, por meio do depósito, para que o prazo para a impugnação comece a ter curso, porquanto não têm essas circunstâncias qualquer influência sobre esse fato processual. Realmente, a apresentação de garantia do juízo não supre eventual falta intimação, eis que, na forma dos arts. 523 e 525 do CPC/2015, a intimação para a apresentação da impugnação, se houver interesse, já se torna perfeita com a intimação para pagar o débito, tendo início automático após o prazo de 15 (quinze) dias para o cumprimento espontâneo da obrigação. Assim, por disposição expressa do art. 525, caput , do novo CPC, mesmo que o executado realize o depósito para garantia do juízo no prazo para pagamento voluntário, o prazo para a apresentação da impugnação somente se inicia após transcorridos os 15 (quinze) dias contados da intimação para pagar o débito, previsto no art. 523 do CPC/2015, independentemente de nova intimação.
Limitação de descontos no BPC para resguardar o mínimo existencial do idoso
Discute-se, na espécie, a limitação de descontos de prestações de mútuo em conta bancária na qual é depositado, em favor do recorrido, o Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social ao Idoso - BPC. Este benefício, de matriz constitucional, cuida de mecanismo de proteção social que visa garantir ao idoso o mínimo indispensável à sua subsistência, não provida por sua família, mediante a concessão de uma renda mensal equivalente a 1 (um) salário mínimo. No plano infraconstitucional, a Lei n. 8.742/1993 (Lei da Assistência Social - LOAS), a par de corroborar que a assistência social é política estatal que provê os mínimos sociais, estabelece que faz jus ao BPC o idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais cuja família tenha renda mensal per capita igual ou inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo. Assim, à toda evidência, o BPC, longe de constituir "remuneração" ou "verba salarial" - do que tratou o precedente firmado no REsp 1.555.722/SP - consiste em renda transferida pelo Estado ao idoso, de modo a ofertar-lhe, em um primeiro momento, condições de sobrevivência em enfrentamento à miséria, e para além disto, "também propiciar condições mínimas de sobrevivência com dignidade". Nesse diapasão, constata-se que, em razão da natureza e finalidade do BPC, a margem de disponibilidade, do beneficiário, sobre o valor do benefício é consideravelmente reduzida se comparada à liberdade do trabalhador no uso de seu salário, proventos e outras rendas. O valor recebido a título de benefício assistencial, deveras, é voltado precipuamente à satisfação de necessidades básicas vitais do indivíduo, com vistas à sua sobrevivência. Diferentemente, em se tratando de verba de natureza salarial, é possível cogitar de uma maior margem financeira do indivíduo para custear suas despesas em geral, como educação, lazer, vestuário, transporte, etc, aí incluído o pagamento de credores. Convém ressaltar, sequer há autorização legal para desconto de prestações de empréstimos e cartão de crédito diretamente no BPC, concedido pela União Federal e pago por meio do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, pois a Lei n. 10.820/2003, que regula a consignação em folha de pagamento de parcelas de empréstimos e cartão de crédito, ao dispor sobre os descontos nos benefícios pagos pelo INSS, remete, tão somente, aos benefícios de aposentadoria e pensão, ou seja, aqueles relacionados à Previdência Social, não abrangendo, assim, benefícios assistenciais. Essa limitação dos descontos, na espécie, não decorre de analogia com a hipótese de consignação em folha de pagamento, mas com a necessária ponderação entre o princípio da autonomia da vontade privada e o princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a não privar o devedor de grande parcela do benefício que, já de início, era integralmente destinado à satisfação do mínimo existencial. Nesse contexto, diante desse específico quadro normativo, cabe realizar a distinção (distinguishing) entre o entendimento firmado no REsp 1.555.722/SP e a hipótese concreta dos autos, para o fim de acolher o pedido de limitação dos descontos ao percentual de 30% do valor recebido a título de Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social ao Idoso - BPC.
Posse ou porte de arma de fogo com identificação adulterada não é crime hediondo
Os Legisladores, ao elaborarem a Lei n. 13.497/2017 - que alterou a Lei de Crimes Hediondos - quiseram conferir tratamento mais gravoso apenas ao crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso proibido ou restrito, não abrangendo o crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso permitido. Ao pleitear a exclusão do projeto de lei dos crimes de comércio ilegal e de tráfico internacional de armas de fogo, o Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal propôs "que apenas os crimes que envolvam a utilização de armas de fogo de uso restrito, ou seja, aquelas de uso reservado pelos agentes de segurança pública e Forças Armadas, sejam incluídos no rol dos crimes hediondos". O Relator na Câmara dos Deputados destacou que "aquele que adquire ou possui, clandestinamente, um fuzil, que pode chegar a custar R$ 50.000, (cinquenta mil reais), o equivalente a uns dez quilos de cocaína, tem perfil diferenciado daquele que, nas mesmas condições, tem arma de comércio permitido". Importante ainda esclarecer que a Lei n. 13.964/2019 alterou a redação da Lei de Crimes Hediondos. Antes da vigência de tal norma, o dispositivo legal considerava equiparado à hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei n. 10.826/2003. Atualmente, considera-se equiparado à hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n.º 10.826/2003. Cabe destacar que a alteração na redação da Lei de Crimes Hediondos apenas reforça o entendimento ora afirmado, no sentido da natureza não hedionda do porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado. Por oportuno, ressalta-se que no Relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater as mudanças promovidas na Legislação Penal e Processual Penal pelos Projetos de Lei n. 10.372/2018, n. 10.373/2018, e n. 882/2019 - GTPENAL, da Câmara dos Deputados foi afirmada a especial gravidade da conduta de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito ou proibido, de modo que se deve "coibir mais severamente os criminosos que adquirem ou "alugam" armamento pesado [...], ampliando consideravelmente o mercado do tráfico de armas". Outrossim, ao alterar a redação do art. 16 da Lei n. 10.826/2003, com a imposição de penas diferenciadas para o posse ou porte de arma de fogo de uso restrito e de uso proibido, a Lei n. 13.964/2019 atribuiu reprovação criminal diversa a depender da classificação do armamento como de uso permitido, restrito ou proibido. Acerca do assunto, esta Corte Superior, até o momento, afirmava que os Legisladores atribuíram reprovação criminal equivalente às condutas descritas no caput do art. 16 da Lei n. 10.826/2003 e ao porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração suprimida, equiparando a gravidade da ação e do resultado. Todavia, diante dos fundamentos ora apresentados, tal entendimento deve ser superado ( overruling ). Corrobora a necessidade de superação a constatação de que, diante de texto legal obscuro - como é o parágrafo único do art. 1.º da Lei de Crimes Hediondos, na parte em que dispõe sobre a hediondez do crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo - e de tema com repercussões relevantes, na execução penal, cabe ao Julgador adotar postura redutora de danos, em consonância com o princípio da humanidade.
Validade da coparticipação de 50% em internação psiquiátrica nos planos de saúde
Cinge-se a controvérsia a definir se é legal ou abusiva a cláusula que impõe coparticipação para a hipótese de internação psiquiátrica, uma modalidade de tratamento para indivíduos acometidos por transtornos mentais, comorbidades ou dependência química, que corresponde a um serviço de saúde de enorme relevância pública. Ao contratar um plano de saúde e despender mensalmente relevantes valores na sua manutenção, o consumidor busca garantir, por conta própria, acesso a um direito fundamental que, a rigor, deveria ser prestado pelo Estado de modo amplo, adequado, universal e irrestrito. Ocorre que, se a universalização da cobertura - apesar de garantida pelo constituinte originário no artigo 198 da Constituição Federal e considerada um dos princípios basilares das ações e serviços públicos de saúde nos termos do artigo 7º da Lei n. 8.080/90 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências - não é viabilizada pelo Estado no tempo e modo necessários para fazer frente às adversidades de saúde que acometem os cidadãos, tampouco pode ser imposta de modo completo e sem limites ao setor privado, porquanto, nos termos do artigo 199 da Constituição Federal e 4º, § 1º, da Lei n. 8.080/90, a assistência à saúde de iniciativa privada é exercida em caráter complementar. A presente discussão vincula-se, exatamente, às entidades privadas de assistência à saúde que, embora prestem - de modo secundário e supletivo - serviços de utilidade pública relacionados a direito fundamental estabelecido na Carta Constitucional, exercem, no âmbito do sistema da livre iniciativa, o seu mister com foco na obtenção de lucro inerente à atividade exercida, ressalvadas aquelas instituições filantrópicas ou sem fins lucrativos. Assim, diferentemente do Estado, que tem o dever de prestar assistência ampla e ilimitada à população, a iniciativa privada se obriga nos termos da legislação de regência e do contrato firmado entre as partes, no âmbito do qual são estabelecidos os serviços a serem prestados/cobertos, bem como as limitações e restrições de direitos. A Lei n. 9.656/98 rege os planos e seguros privados de assistência à saúde e permite à operadora dos respectivos serviços custear, total ou parcialmente, a assistência médica, hospitalar e odontológica de seus clientes, estabelecendo no artigo 16, inciso VIII, que os contratos, regulamentos ou produtos colocados à disposição dos consumidores podem fixar "a franquia, os limites financeiros ou o percentual de co-participação do consumidor ou beneficiário". Como se vê da lei de regência, os planos de saúde podem ser coparticipativos ou não, sendo, pois, lícita a incidência da coparticipação em determinadas despesas, desde que informado com clareza o percentual deste compartilhamento, nos termos dos artigos 6º, inciso III e 54, §§ 3o e 4o da Lei n. 8.078/90, nos quais estabelecido que eventuais limitações a direitos, ressalvas e restrições de cobertura, bem como estipulações e obrigações carreadas aos consumidores devem ser redigidos de modo claro, com caracteres ostensivos e legíveis e com o devido destaque a fim de permitir a fácil compreensão pelo consumidor. A prescrição da internação em virtude de transtornos psiquiátricos ou doenças mentais é considerada uma medida terapêutica excepcional, a ser utilizada somente quando outras formas de tratamento ambulatorial ou em consultório se mostrarem insuficientes para a recuperação do paciente/consumidor. Diante desse contexto, em obediência aos ditames da Lei n. 9.656/98, que admite a coparticipação de algumas despesas, e aos princípios orientadores da internação segundo a Lei n. 10.216/2001, o Conselho Nacional de Saúde Complementar - CONSU e a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, a fim de regulamentarem a questão, editaram diversas Resoluções Normativas para o trato da matéria ao longo das últimas duas décadas. Consoante os ditames legais e regulamentares acerca da questão jurídica, verifica-se que não é abusiva a cláusula de coparticipação expressamente contratada e informada ao consumidor, limitada ao máximo de 50% do valor contratado entre a operadora de planos privados de assistência à saúde e o respectivo prestador de serviços de saúde, para a hipótese de internação superior a 30 (trinta) dias decorrente de transtornos psiquiátricos, pois destinada à manutenção do equilíbrio entre as prestações e contraprestações que envolvem a gestão dos custos dos contratos de planos privados de saúde.