Inexigibilidade de certidões negativas de débitos tributários para concessão da recuperação judicial
Da leitura dos enunciados normativos dos arts. 57 e 58, caput, da Lei n. 11.101/2005, depreende-se que a apresentação das certidões negativas de débitos tributários constitui requisito elencado pelo legislador para concessão da recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção, ou tenha sido aprovado pela assembleia de credores. Reforçando essa exigência, o Código Tributário Nacional, em seu art. 191-A, condiciona a concessão da recuperação à prova da quitação de todos os tributos. Todavia, dada a existência, noutro vértice, de previsão legal no sentido de que as fazendas públicas devem, "nos termos da legislação específica", conceder o parcelamento dos débitos fiscais ao empresário em recuperação judicial (art. 68 da LFRE), a jurisprudência do STJ vem entendendo que, por se tratar o parcelamento de verdadeiro direito do devedor, a mora legislativa em editar referida lei faz com que as sociedades em crise estejam dispensadas de apresentar as certidões previstas no art. 57 da LFRE. Muito embora a lacuna legislativa acerca do parcelamento especial tenha sido preenchida na esfera federal com a edição da Lei n. 13.043/2014 (regulamentada pela Portaria PGFN-RFB n. 1/15), a demonstração da regularidade fiscal do devedor que busca o benefício recuperatório não pode ser exigida sem que se verifique sua compatibilidade com os princípios e objetivos que estruturam e servem de norte à operacionalização do microssistema instituído pela Lei n. 11.101/2005, elencados neste mesmo diploma legal. O objetivo central do instituto da recuperação judicial é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" (art. 47 da LFRE). Dada a existência de aparente antinomia entre a norma do art. 57 da LFRE e o princípio insculpido em seu art. 47 (preservação da empresa), a exigência de comprovação da regularidade fiscal do devedor para concessão do benefício recuperatório deve ser interpretada à luz do postulado da proporcionalidade. Atuando como conformador da ação estatal, tal postulado exige que a medida restritiva de direitos figure como adequada para o fomento do objetivo perseguido pela norma que a veicula, além de se revelar necessária para garantia da efetividade do direito tutelado e de guardar equilíbrio no que concerne à realização dos fins almejados (proporcionalidade em sentido estrito). De fato, caso se entenda que a ausência das certidões de regularidade fiscal do devedor impede a concessão do benefício recuperatório, sua não apresentação teria como consequência a decretação da falência da sociedade empresária, o que, fatalmente, dificultaria o recebimento do crédito tributário, haja vista estarem eles classificados em terceiro lugar na ordem de preferências (art. 83, III, da LFRE). E mais, além de, nesse contexto, tratar-se de medida inadequada para atingir a finalidade pretendida pela norma, a exigência da regularidade fiscal do devedor não se revela necessária, pois, no atual sistema de recuperação de empresas, a Fazenda Pública não fica desprovida dos meios próprios para cobrança dos créditos de sua titularidade. Isso porque as execuções de natureza fiscal, ao contrário do que ocorre com as demais ações e execuções movidas por credores particulares da recuperanda, não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, devendo seguir seu curso natural, conforme dispõe o art. 6º, caput e § 7º, da Lei n. 11.101/2005. Na tentativa de realizar a finalidade sobrejacente à regra em questão (garantir a arrecadação fiscal), acaba-se por obstruir indevidamente os fins almejados pelo princípio da preservação da empresa (corolário da função social da propriedade e fundamento da recuperação judicial) e os objetivos maiores do instituto recuperatório - viabilização da superação da crise, manutenção da fonte produtora e dos empregos dos trabalhadores. De se notar, outrossim, que o condicionamento da concessão da recuperação judicial à apresentação de certidões negativas de débitos tributários resulta em afronta à própria lógica do sistema instituído pela Lei n. 11.101/2005, na medida em que, ao mesmo tempo em que se exige a comprovação da regularidade fiscal do devedor, exclui-se o titular desses créditos (Fazenda Pública) dos efeitos de seu processamento (nos termos da regra do § 7º do art. 6º da LFRE e daquela prevista no art. 187, caput, do CTN). Assim, conclui-se que os motivos que fundamentam as normas do art. 57 da LFRE e do art. 191-A do CTN, assentados exclusivamente no privilégio do crédito tributário, não têm peso suficiente para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira, sobretudo diante das implicações negativas que a interrupção da atividade empresarial seria capaz de gerar, diretamente, nas relações de emprego e na cadeia produtiva e, indiretamente, na receita pública e na economia de modo geral.
Prequestionamento ficto por razões de apelação ignoradas e reiteradas em contrarrazões do recurso especial
À luz do acórdão da Primeira Turma do STJ, entende-se que o recurso especial não atende o requisito do prequestionamento quanto aos fundamentos das razões de apelação desprezados no acórdão que deu integral provimento ao recurso. Para o acórdão paradigma, julgado pela Corte Especial, "a questão levantada nas instâncias ordinárias, e não examinada, mas cuja pretensão foi acolhida por outro fundamento, deve ser considerada como prequestionada quando trazida em sede de contrarrazões" (EREsp 1.144.667/RS). A questão precisa ser analisada sob a perspectiva da sucumbência e da possibilidade de melhora da situação jurídica do recorrente, critérios de identificação do interesse recursal. Não se trata de temática afeta a esta ou aquela legislação processual (CPC/1973 ou CPC/2015), mas de questão antecedente, verdadeiro fundamento teórico da disciplina recursal. A configuração do interesse recursal pressupõe a presença do binômio sucumbência e perspectiva de maior vantagem. Sem ele a parte simplesmente não consegue superar o juízo de admissibilidade recursal. No caso, a parte não dispunha, após o julgamento da apelação, de nenhum dos dois requisitos: não era vencida (sucumbente) e não existia perspectiva de melhora na sua situação jurídica. Logo, agiu segundo a ordem e a dogmática jurídicas quando se absteve de recorrer. Além disso, se averbado nas contrarrazões do recurso especial o fundamento descartado no julgamento da apelação, não há como cobrar algo a mais. Fez-se o que se esperava para manter viva a temática. A exigência de oposição de embargos declaratórios a fim de inutilmente prequestionar matéria que sequer se sabe se voltará a ser abordada vai de encontro à tendência, vigente mesmo antes do atual Código de Processo Civil, de desestimular a desnecessária utilização das vias recursais. Dessa forma, prevalece o entendimento que considera toda a matéria devolvida à segunda instância apreciada quando provido o recurso por apenas um dos fundamentos expostos pela parte, a qual não dispõe de interesse recursal para a oposição de embargos declaratórios. Assim, consideram-se prequestionados os fundamentos adotados nas razões de apelação e desprezados no julgamento do respectivo recurso, desde que, interposto recurso especial, sejam reiterados nas contrarrazões da parte vencedora.
Competência do TCDF para controle externo de recursos federais no Distrito Federal
A Constituição Federal em seu art. 75 determina que a competência do Tribunal de Contas da União não afasta a competência dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Distrito Federal na hipótese em que esta vem delineada nas Constituições Estaduais ou na Lei Orgânica do Distrito Federal. De fato, o inciso VII do art. 78 da Lei Orgânica do Distrito Federal é expresso em atribuir a competência ao Tribunal de Contas do Distrito Federal para "fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados ao Distrito Federal ou pelo mesmo, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres". Nesse contexto, considerada a autonomia própria dos entes federados, a fiscalização, pelo Tribunal de Contas da União, dos recursos federais repassados ao Distrito Federal não impede a realização de fiscalização, pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal, na aplicação desses mesmos recursos no âmbito deste ente, que, inclusive, tem pleno e legítimo interesse na regular prestação dos serviços de saúde no seu território. Assim, desinfluente o fato de os serviços prestados terem sido pagos com recursos federais e/ou distritais, ou somente com recursos federais repassados, pois, em qualquer caso, pode a fiscalização externa do Tribunal de Contas do DF apreciar a aplicação regular desses recursos, mormente na área de serviços públicos de saúde.
Competência do juízo deprecante para degravação de depoimento por carta precatória no CPC/2015
Inicialmente, frisa-se que o cumprimento de carta precatória é composto por diversos atos, os quais possuem suficiente autonomia para que não sejam considerados um ato único, mas sim como vários procedimentos isolados, aos quais é possível a aplicação de norma processual superveniente. Sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, a jurisprudência da Segunda Seção se consolidou no sentido de que cabia ao juízo deprecado a realização da degravação, pois o ato integrava a diligência a ser realizada e o Código, conquanto permitisse a colheita do depoimento por outro meio idôneo, previa sua degravação quando o juiz assim determinasse, de ofício ou por requerimento das partes, ou quando houvesse recurso da sentença. O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao permitir, no § 1º do artigo 453, a oitiva de testemunha que residir em comarca diversa por meio de videoconferência, o que dispensa, inclusive, a utilização de carta precatória, ao menos em parte. Além disso, a gravação passou a ser um método convencional, ficando a degravação prevista apenas para hipóteses excepcionais em que, em autos físicos, for interposto recurso, sendo impossível o envio da documentação eletrônica. Observa-se que o artigo 460 do CPC/2015 não mais prevê, como fazia o artigo 417, § 1º, do CPC/1973, a degravação "noutros casos, quando o juiz o determinar, de ofício ou a requerimento da parte". Isso não significa que essas hipóteses são vedadas, mas demonstra o intuito do novo Código de incentivar a utilização da mídia eletrônica, tornando a degravação uma situação excepcional. Nesse contexto, como a gravação passou a ser um método convencional e a degravação está prevista somente "quando for impossível o envio de sua documentação eletrônica", parece que o juízo deprecado pode realizar a colheita da prova por gravação sem realizar a transcrição, pois se supõe que o envio da mídia eletrônica já é suficiente para se entender o ato como completo, estando regularmente cumprida a carta precatória. Assim, à luz do disposto no artigo 460 do CPC/2015, compete ao juízo deprecante realizar ou autorizar que as partes realizem a degravação caso se mostre necessária.
Irretroatividade da representação no estelionato após o oferecimento da denúncia
A Lei n. 13.964/2019, conhecida como "Pacote Anticrime", alterou substancialmente a natureza da ação penal do crime de estelionato (art. 171, § 5º, do Código Penal), sendo, atualmente, processado mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido, salvo se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos de idade ou incapaz. Observa-se que o novo comando normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade.