Este julgado integra o
Informativo STF nº 851
Comentário Damásio
Conteúdo Completo
O Plenário julgou procedente pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade da Lei 8.866/1994, resultante da conversão da Medida Provisória 427/1994, reeditada pela Medida Provisória 449/1994. A lei impugnada trata do depositário infiel de valor pertencente à Fazenda Pública. De início, o Colegiado assinalou que, ainda que a ação tenha sido ajuizada, originalmente, em face de medida provisória, não cabe falar em prejudicialidade do pedido. Não há a convalidação de eventuais vícios existentes, razão pela qual permanece a possibilidade do exercício do juízo de constitucionalidade. Na espécie, há continuidade normativa entre o ato legislativo provisório e a lei que resulta de sua conversão. No que diz respeito à análise dos requisitos de urgência e relevância da medida provisória, no caso, não cabe ao Poder Judiciário examinar o atendimento desses requisitos. Trata-se de situação tipicamente financeira e tributária, na qual deve prevalecer, em regra, o juízo do administrador público. Afastada a hipótese de abuso, deve-se adotar orientação já consolidada pelo STF e, portanto, rejeitar a alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 62 da CF. Ademais, a medida provisória atacada foi posteriormente convertida em lei, ou seja, recebeu a chancela do Poder Legislativo, titular do poder legiferante por excelência. Assim, o reconhecimento da existência de inconstitucionalidade formal poderia ser interpretado como ataque ao princípio da separação dos Poderes. No mérito, a Corte explicou que a lei: a) cria a ação de depósito fiscal, com o escopo primordial de coagir, sob pena de prisão, o devedor a depositar o valor referente à dívida na contestação, ou após a sentença, no prazo de 24 horas; b) chancela a possibilidade de submeter o devedor a sofrer processo judicial de depósito, sem que tenha ocorrido a finalização do processo administrativo fiscal; e c) dispõe sobre a proibição de, em se tratando de coisas fungíveis, seguir-se o disposto sobre o mútuo (CC/1916, art. 1280; CC/2002, art. 645), com a submissão do devedor a regime mais gravoso de pagamento, em face dos postulados da proporcionalidade, do limite do direito de propriedade e do devido processo legal. Diante desse cenário, admitir que seja erigido à condição de “depositário infiel aquele que não entrega à Fazenda Pública o valor referido neste artigo, no termo e forma fixados na legislação tributária ou previdenciária” (Lei 8.866/1994, art. 1º, § 2º) para o fim de coagi-lo a pagar a dívida tributária ou previdenciária da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal, cria situação mais onerosa do que a prevista no ordenamento jurídico até então vigente, consistente nas garantias constitucionais e nas já previstas disposições do CTN (CF, art. 5º, LV; e CTN, arts. 142, 201 e 204). À época da edição da Medida Provisória 427/1994, já existia a Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/1980) e a medida cautelar fiscal (Lei 8.397/1992), as quais são instrumentos suficientes, adequados e proporcionais para a cobrança tributária. Cumprindo o mandamento constitucional do devido processo legal, ambos os dispositivos estipulam ritos e privilégios para a tutela da arrecadação ao erário e garantias ao contribuinte. Sem guardar qualquer correspondência com o postulado da proporcionalidade e seus subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, a lei em questão possibilita o ajuizamento de demanda que coage ao depósito da quantia devida com ou sem apresentação de contestação, sob pena de decretação de revelia. E mais: a legislação questionada admite o ajuizamento de demanda judicial apenas com base em “declaração feita pela pessoa física ou jurídica, do valor descontado ou recebido de terceiro, constante em folha de pagamento ou em qualquer outro documento fixado na legislação tributária ou previdenciária, e não recolhido aos cofres públicos” (Lei 8.866/1994, art. 2º, I), sem que ocorra a finalização do processo administrativo fiscal, o que fere postulados constitucionais (CF, art. 5º, LIV e LV). É corolário do princípio do devido processo legal que aos litigantes sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes. O postulado também se aplica aos processos que contenham relação jurídico-tributária, razão pela qual aquela medida vulnera a garantia do contribuinte ao devido processo legal. Nesse sentido, determinar que a contestação seja apresentada com o depósito do numerário sob pena de revelia equivale a exigir depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial, o que é manifestamente proibido pela Suprema Corte, nos termos da Súmula Vinculante 28. Ao contribuinte é facultado ajuizar ação de depósito em face do Fisco, a fim de obter certidão negativa de débito (ou positiva com efeito de negativa). Porém, ele não pode ser coagido a assim proceder, sob pena de vulneração ao princípio da proporcionalidade, do contraditório e da ampla defesa. De outro lado, não há nenhuma lesão ao patrimônio público, haja vista os instrumentos processuais à disposição da Fazenda Pública. Demonstrado, pois, que, se o incremento da arrecadação era o resultado almejado, o ordenamento jurídico já contém modos e formas de chegar a resultado semelhante, quais sejam, ação de execução fiscal ou medida cautelar fiscal. Sob esse aspecto, a lei em comento não guarda compatibilidade com a norma constitucional e ainda apresenta outras incompatibilidades. É cediço que há o dever fundamental de pagar tributos, entretanto os meios escolhidos pelo Poder Público devem estar jungidos à necessidade da medida, à adequação e à proporcionalidade, em sentido estrito, de restringir os meios de adimplemento em caso de cobrança judicial, as quais não estão presentes na apreciação da legislação ora questionada. O Estado brasileiro baseia-se em receitas tributárias. Um texto constitucional como o nosso, pródigo na concessão de direitos sociais e na promessa de prestações estatais aos cidadãos, deve oferecer instrumentos suficientes para que possa fazer frente às inevitáveis despesas que a efetivação dos direitos sociais requer. O tributo é esse instrumento. Considera-se, portanto, a existência de um dever fundamental de pagar impostos. No caso da Constituição, esse dever está expresso no § 1º do art. 145. Existe inegável conflito entre os cidadãos e os agentes privados no sentido de transferir para os demais concidadãos o ônus tributário, furtando-se, tanto quanto possível, a tal encargo. Ao disciplinar de maneira isonômica, segundo a capacidade econômica do contribuinte, a distribuição dos ônus tributários e ao operar por meio da fiscalização tributária para conferir efetividade a esse objetivo, o Estado está verdadeiramente a prestar aos cidadãos a função de árbitro de um conflito entre agentes privados. Igualmente, o Colegiado observou a lei à luz do disposto no inciso LIV do art. 5º da Constituição. Constatou que o instrumento de agir em juízo, lá estabelecido, restringe o cumprimento da obrigação pelo devedor tributário, quando determina apenas o depósito da quantia em dinheiro, em claro desrespeito ao direito de propriedade. Isso ocorre porque o diploma normativo em questão suprime, parcial ou totalmente, posições jurídicas individuais e concretas do devedor vinculadas ao pagamento da dívida tributária, que repercutem em sua propriedade, ante a existência de rol normativo-legal que já disciplina a matéria com completude. A restrição acaba conflitando com a existência da ação de execução fiscal, na qual coincide tal possibilidade, aliada a outras. A medida legislativa-processual criada não é adequada, tampouco necessária para obtenção de fins legítimos, por restringir a propriedade do devedor e estabelecer uma única forma de pagamento: depósito da quantia devida em dinheiro no prazo de 24 horas, situação flagrantemente inconstitucional. A retirada das disposições relativas à prisão civil por dívidas acaba com o escopo da legislação em comento. Afinal, não existe plausibilidade para manutenção da tutela jurisdicional díspar com o ordenamento jurídico, a qual cria situação desproporcional e, portanto, inconstitucional para o fim de otimizar a arrecadação tributária. Por fim, a possibilidade de manejo da ação de depósito fiscal está em franco desuso, ante a existência de outros meios de que o Fisco se pode valer para cobrança de seus créditos, tal como execução fiscal ou medida cautelar fiscal, fato que não afasta a inconstitucionalidade. No entanto, para evitar insegurança jurídica ou qualquer prejuízo ao erário em relação aos prazos prescricionais, o Tribunal definiu que as ações de depósito fiscal em curso deverão ser transformadas em ação de cobrança, de rito ordinário, com oportunidade ao Poder Público para a sua adequação ou para requerer a sua extinção.
Legislação Aplicável
Lei 8.866/1994: art. 1º, § 2º CC/1916: art. 645 e art. 1280 CF: art. 5º, L CTN: art. 142, art. 201 e art. 204
Informações Gerais
Número do Processo
1055
Tribunal
STF
Data de Julgamento
15/12/2016